Almas Arruinadas

Imagem de StockSnap por Pixabay

Sempre a mesma merda, outra vez no caralho da playstation. Passa horas naquilo.

E Sandra chora na cama. O telemóvel vibra com as mensagens de conforto da amiga.

É uma boa amiga.

Afinal, conhece profundamente o que ela passou. Ajudou-a quando os amigos deixaram de a visitar, no tal ano em que teve de parar com a escola. Parecia um cadáver vivo mas Mariana não a deixou. 

Esteve sempre.

E agora está outra vez. De um momento para o outro, Sandra arrisca recair. E isso significa ser internada novamente, deixar tudo, outra vez. Mariana também sabe que ela anda a foder o Miguel às escondidas. Não a condena. Afinal aquele palhaço do namorado, não vive sem o computador e as consolas e os Mangas e mais o caralho que o foda. “Larga esse triste!”

E as mensagens caem.

Sandra sabe que o devia largar, mas agora tem Algo. Nunca teve nada. Não teve pais, não teve saúde, não teve quarto e certamente não teve a Sua própria vida. Agora, é o mais próximo que alguma vez conheceu de uma família. Quando um dia for mãe, ficará completa, finalmente feliz.
A almofada molha-lhe a cara, encharcada em lágrimas. Mas ela resistirá. A sua tristeza é apenas um meio para encontrar algo maior. Um caminho penoso que lhe trará enfim, 

a recompensa.

Às três da manhã continua só. Adormece só. E Pedro continua a viver no seu mundo de fantasia, onde idealiza aquilo que gostaria de ser, 

mas não é nada.

Como foi o meu primeiro amigo de escola, nunca perdemos totalmente o contacto. Fomos vivendo cada vida e a espaços, encontrávamo-nos. Fui conhecer a namorada dele. A única que teve. E senti confusão entre a felicidade e alguma tristeza. Fiquei feliz porque sabia que Pedro já não morreria virgem, mas demasiado triste, por conhecer a sua mente. 

Apenas o via feliz no seu mundo de fantasia.

E nesse mundo viviam elfos, ogres, gnomos, anões e super-heróis, mas não havia uma Sandra. Não conhecia outro universo. No mundo real era desajustado, com pequenos laivos de sobriedade. E assim, foi empurrando a vida com a cara esquálida num branco triste. Nunca seria feliz no mundo real, que se fechou para ele quando ainda era um embrião.
O pai veio morto na alma, do Ultramar. 

E já Pedro era maior de idade quando acidentalmente, assistiu ao seu suicídio pela corda. 

Merdas que deixaram marcas profundas.

Mas piores foram os longos anos de infância. Conviveu com todos os traumas que acompanharam o pai. Fez involuntariamente parte dos jogos psicológicos que a mãe usou para os proteger daquele homem que nunca foi exatamente o que era. Com ela desenvolveu uma relação que desconhecia os limites da dependência, roçando o doentio. 
Era uma mulher triste, sabia que lhe provocara danos irreversíveis. E triste, pois esquecia-se frequentemente porque o fizera. Em nome de algo maior, um futuro que demorou a chegar. 

E chegando, morreu.

- Quem é esse Miguel? - Perguntará Pedro, dias depois. 
Conheceu-o no trabalho, um tipo atrevido. Sandra derrete-se com facilidade, e é a sua fraqueza. Nunca será uma mulher fiel, a vida programou-a de outro modo. Sempre em busca de ser amada,

para se encontrar.

- Miguel, qual Miguel? Do que é que estás para aí a falar? - Mente imenso. A anorexia ensinou-lhe, desde os 11 anos, mas fá-lo mal, cheia de tiques denunciantes. Na maioria das vezes, Pedro acredita.
- Não negues! Eu vi as mensagens que ele te mandou. - Num esquema engendrado entre ele e a mãe, descobrirá afinal por onde Sandra anda nas noites em que diz ficar na loja para descarregar mercadoria. 

Três, quatro da manhã. 

Ultimamente tem-se tornado mais frequente e começa a levantar suspeitas. Depois de a seguirem, Pedro encontrará forma de lhe bugar o telemóvel. Virá as mensagens e cairá incrédulo. Nunca, no seu mundo imaginário, isto poderia acontecer. Afinal, foi ele quem a salvou ao namorar consigo, uma pobre coitada cheia de perturbações. 

Deu-lhe a segurança que nunca teve.

Diz constantemente que lhe é grata. Mas também sente falta de ser fodida, de ser usada. Miguel não foi o primeiro. É apenas o primeiro por quem sente mais. O cabrão mente-lhe descaradamente para continuar a fode-la tanto quanto quer. Ela deixou-se levar, porque por dentro é uma menina. 
Uma mulher interpretaria o texto nas entrelinhas, nunca se deixaria levar como ela deixa. E vai ouvindo como uma música, que Miguel largará a mulher para ficar consigo.

Na sua ingenuidade de menina.


Imagem de Tú Anh por Pixabay

Pedro é um cobarde. Mais cobarde que a lógica poderá alcançar. Nunca faria fisicamente frente a um homem. E sabendo que Miguel não estará em casa, levará a namorada arrastada pela sua loucura, para mostrar as mensagens à mulher do amante, obrigando-a a verbalizar aquilo que a vergonha não deixa. Submete-la-á à maior humilhação da vida dela, 

enquanto Sandra cairá de joelhos, em pranto.

A mulher, aterrada com o triste número de circo, sentirá por momentos, compaixão pela outra, vexada ao som dos gritos esganiçados de Pedro. 
É diferente deles. Talvez mais forte, ou apenas acomodada. Sabe que o marido tem outras mas sempre fez vista grossa. Afinal, também o relacionamento deles nasceu da traição à ex-mulher. Admitiu sempre que teria de viver sob o manto negro da maldição por ser, 

a outra. Resignou-se.

Os outros dois deixar-se-ão. Sandra regressará à ala psiquiátrica do Hospital e ele jogará mais playstation e comprará mais Mangas e super-heróis em miniatura. Ainda não o sabem, mas quando ela recuperar, vão-se juntar de novo. Ele visita-la-á, ela mentir-lhe-á. Da teia de mentiras e dependências mútuas que ambos criaram, 

nascerá uma criança.

Pobre criança. Dependente de duas almas arruinadas. E uma criança nunca é fácil de criar. Entre gritos, desconfianças, traições, choros e depressões, continuará a crescer.

Mas naquele dia, que o psiquiatra não conseguirá prever, 

Pedro não se controlará, mais uma vez.

Agora, verdadeiramente grave.

Matará a mulher e a criança. 

Num momento de raiva cega.

Nem terá coragem de se matar a seguir.

Ficará ali. 

A olhar o vazio. 

À espera.

Morrerá semanas mais tarde, na prisão,

como se fosse um suicídio.

Como se tivesse a mesma coragem do pai…

Quatro da manhã, Pedro vai para a cama. Sandra dorme e as lágrimas secaram.

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